segunda-feira, dezembro 29, 2014

BDSM e lei

Práticas BDSM e Lei

 - Um contributo para a clarificação do tema -
 http://www.consensual.org.pt/joomla/index.php?option=com_content&view=article&id=23:bdsm-e-lei&catid=5:bdsm-e-lei&Itemid=182
1. Introdução
Uma das preocupações da comunidade BDSM, por vezes abordada em discussões levantadas em sites ou redes sociais ligadas ao tema, é a do enquadramento ou suporte legal das práticas que lhe estão inerentes. Sendo o leque de práticas mais do que variado, escusaremos de as enumerar aqui mas não deixaremos de lançar luz sobre a questão. E fá-lo-emos de seguida, sem prejuízo de futuras análises mais aprofundadas sobre temas específicos, em dois eixos: um geral e outro especial, sempre dentro da legislação portuguesa.
No eixo geral, do qual nos ocuparemos no presente artigo, iremos abordar as linhas mestras de legislação que poderão de alguma forma constituir o regime de base aplicável ao BDSM e a razão de ser dessa aplicabilidade, numa tentativa de esclarecer conceitos para melhor compreensão do tema.
Já no âmbito do eixo especial teremos em atenção legislação mais específica e tentaremos uma análise mais aprofundada dos preceitos e, inclusivamente, uma aproximação à realidade das práticas mais correntes de BDSM. Deixemos por ora esta análise a ser efectuada em sede própria.
Contudo, e independentemente da abordagem geral ou especial a ser feita, gostaríamos de destacar que este artigo e, bem assim, os que se lhe seguirão, reflectem apenas e somente a opinião de quem os redige.   

2. Enquadramento conceptual
Não será demais presumir que a maioria, senão a totalidade das práticas BDSM, comportam um grau objectivo de risco de dano. O risco deriva, nestes casos, do facto de as práticas envolverem, não poucas vezes e a título exemplificativo, situações de dor infligida ou estados de imobilização de um sujeito, no domínio físico, ou mesmo coacção (ainda que simulada), no domínio mental. O primeiro dado a considerar é, pois, o do risco de dano físico ou psicológico.
O segundo elemento a reter será o do propósito da prática que leva à existência do risco, ou seja, o elemento ligado à vontade dos sujeitos. Aqui deveremos separar o elemento vontade em duas vertentes: a do sujeito que induz a prática e a do sujeito a quem a mesma é aplicada, na terminologia BDSM, Top e bottom, respectivamente. É pois certo que, e sublinhe-se, no espírito de cumprimento da trilogia SSC (videSSC/RACK), o Top que induz a prática não pretende ofender em sentido estrito o sujeito que a recebe. Como bem se sabe, o facto de induzir uma prática BDSM a um sujeito tem, como objectivo último e para quem a induz, o de retirar prazer ao nível físico e/ou mental. Doutro lado, o elemento vontade em quem recebe a prática traduz-se num consentimento, igualmente com a finalidade de retirar prazer físico e/ou mental.
O nosso cenário genérico é, pois, o seguinte: existência de sujeitos que induzem, consentidos por outros, e de sujeitos que recebem, com o seu consentimento, determinadas práticas que comportam risco de dano físico e/ou mental com o propósito directo e comum de retirar prazer, também ele, físico e/ou mental (agregando um pendor fortemente sexual).

3. Enquadramento Legal – eixo geral.
A questão pertinente será a de saber de que modo este cenário implica (ou é implicado) pela Lei. Comecemos pelo princípio: sempre boa ideia!
A Constituição da República Portuguesa(1), doravante CRP, na sua Parte I (Direitos e deveres fundamentais) refere no artigo 12º, número 1, que passamos a transcrever, o seguinte:
“Artigo 12.º
(Princípio da universalidade)
1.    Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição.”
Ainda dentro da mesma Parte I da CRP, está consignado no artigo 25º, número 1, que:
“Artigo 25.º
Direito à integridade pessoal
 1. A integridade moral e física das pessoas é inviolável.”
Infere-se logicamente que todos os cidadãos gozam, pois, do direito à integridade moral e física. É indiscutível e decorre dos princípios do Estado de Direito democrático que é a República Portuguesa baseado, por um lado, no conceito de “dignidade da pessoa humana” (artigo 1.º da CRP) e, por outro, no de“respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais” (artigo 2.º da CRP)(2).
O direito à integridade pessoal como direito fundamental faz parte de um conjunto de direitos normalmente apelidados de direitos absolutos, os quais não são, em termos gerais, passíveis de qualquer tipo de restrição ou renúncia. Ora, a presente referência constitucional é importante para esclarecer o quadro no qual é desenvolvida a legislação que tutela os bens jurídicos subjacentes à ideia de integridade física e moral que são o “corpo” e a “saúde” (física e psíquica) dos indivíduos. Assim, o gozo do direito constitucional previsto no artigo 25º, número 1, da CRP consubstancia-se, em parte, pela existência de um bem não lesado (neste caso, os bens “corpo” e “saúde” referidos atrás). Quando a lei tutela (ou protege, se quisermos) um bem confere-lhe o estatuto de bem jurídico.
A axiologia constitucional, bem como a natureza fundamental (mas generalista) dos seus preceitos, implica que a mencionada tutela dos bens subjacentes aos direitos seja remetida, para desenvolvimento e concretização, para leis de carácter mais específico de que é exemplo o Código Penal (doravante CP). A tutela penal dos bens engloba, mais especificamente, a tutela do conjunto dos bens jurídicos fundamentais dos quais são exemplo a “vida”, o “corpo” e a “saúde”, por referência aos direitos fundamentais previstos na CRP.
O exemplo que aqui damos não é despiciendo pois é no âmbito penal que os bens “corpo” e “saúde” (física ou mental), directa e principalmente afectados pelas práticas BDSM, são tutelados de forma mais detalhada contra eventuais danos que lhes possam ser causados(3).  
Resulta evidente que os bens que podem, em potência, estar sujeitos ao risco de dano (lesão) por exercício das práticas BDSM, se encontram tutelados pelo Direito Penal por referência ao seu carácter de bens jurídicos fundamentais abraçado pela tutela constitucional dos direitos, também eles, fundamentais. Se este dado é evidente, não o é já o da livre disponibilidade dos bens jurídicos. Constitui questão controversa a de saber até que ponto o titular do gozo do bens jurídicos pode deles dispor, contribuindo para o efeito todas as discussões em torno de temas como o consumo de drogas aditivas, a eutanásia ou a interrupção voluntária da gravidez extravasando o âmbito jurídico e chamando à colação o social salpicado pelo princípio da liberdade. No caso das práticas de BDSM a questão ganha relevo pelo que atrás foi dito quanto à lesão dos bens “corpo” ou “saúde”.
Sem prejuízo destes bens constituírem, em nossa opinião, o ponto de partida para a análise da tutela penal das práticas BDSM não poderemos deixar de fazer uma breve referência à indisponibilidade do bem jurídico “vida”. Para além da inviolabilidade prevista no artigo 24º, número 1 da CRP (“A vida humana é inviolável.”), os artigos 131.º e seguintes do CP punem especificamente “quem matar outra pessoa” (Homicídio, artigo 131.º do CP(4)) e também “quem matar outra pessoa determinado por pedido sério, instante e expresso que ela lhe tenha feito” (Homicídio a pedido da vítima – ou eutanásia -, artigo 134º do CP(5)). Conclui-se pois que, nem a pedido da vítima (o qual implica consentimento), o dano “morte”(6) deixa de ser punido, resultando assim que o bem jurídico “vida” seja indisponível não podendo o seu titular dele abrir mão(7).
No âmbito da (in)disponibilidade do bens subjacentes à integridade pessoal (“corpo” e “saúde”) não prescindiremos da análise de disposições concretas dos tipos de crime presentes no CP que poderão encaixar, em si, práticas de BDSM. Por considerarmos esta análise inserida no eixo especial que delimitámos inicialmente, deixá-la-emos para um futuro próximo, bem como a análise de penas e de outras vicissitudes que podem agravar ou mesmo excluir a ilicitude dos actos. Entenda-se, no entanto, que o enquadramento geral, ao nível constitucional e penal aqui vertido e, bem assim, a análise da indisponibilidade do bem jurídico “vida”, revelar-se-ão essenciais como base de entendimento de futuros artigos.

A reter:
1.      As práticas BDSM implicam a existência de sujeitos que induzem, consentidos por outros, e de sujeitos que recebem, com o seu consentimento, determinadas práticas que comportam risco de dano físico e/ou mental com o propósito comum de retirar prazer, também ele, físico e/ou mental.
2.      O direito à integridade pessoal (física e moral) e o direito à vida, como direitos fundamentais, encontram-se tutelados constitucionalmente.
3.      A concretização da tutela constitucional desses direitos revela-se através da tutela penal dos bens jurídicos que lhes estão subjacentes, a saber, o corpo, a saúde (física e/ou mental) e a vida, relevantes para o BDSM por serem estes os bens passíveis de lesão em consequência das suas práticas.
4.      O bem jurídico vida é indisponível não podendo os seus titulares dele dispor de forma a que lhe seja causado dano.


(2)    Sem esquecer que o nosso texto Constitucional (artigo 16.º) obriga à interpretação e integração dos preceitos relativos aos direitos fundamentais de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/cidh-dudh.html ou http://www.un.org/en/documents/udhr/).
(3)   Refere-se a tutela penal sem prejuízo da tutela civil prevista no artigo 70.º do Código Civil que, sob a epígrafe “Tutela geral da personalidade”, dispõe no seu número 1: “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.”. Simplesmente justificamos a opção aqui tomada de dar maior ênfase à tutela penal considerando a maior gravidade das punições nessa sede, como por exemplo, a pena de prisão, restritiva da liberdade (direito fundamental) do agente criminoso.
(4)   Excluindo-se, assim, o suicídio.
(5)   Como nota refira-se que em 2010 a jurisprudência alemã reforçou o direito ao suicídio assistido continuando, não obstante, a punir a eutanásia.
(6)   A importância de aqui considerar o bem “vida” e o respectivo dano (“morte”) deriva do facto deste último poder constituir o resultado de uma ofensa grave aos bens jurídicos que nos interessam analisar no âmbito das práticas de BDSM (“corpo” e “saúde”).
(7)    Ressalvam-se, quanto a terceiros, alguns casos como os de inimputabilidade em razão da idade (menores de 16 anos, cfr. artigo 19.º do CP) ou de anomalia psíquica (artigo 20.º do mesmo diploma).

Lisboa, 24 de Setembro de 2011
Mistress Patrizia

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